Clima: quem anda a cegar - e a usar - jornalistas?

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Nota: ao atualizar o meu site, tive de ler este artigo de novo, e apesar dos argumentos continuarem na sua maioria válidos, não gosto da forma como escrevi, do excesso de sarcasmo e de me dirigir pessoalmente ao autor que critico, pelo menos da forma como o fiz. Hoje tentaria escrever de forma diferente, mas vou deixar a versão original inalterada por motivos de arquivo.


Depois de ler um artigo de Luís Ribeiro na Visão Verde, não pude deixar de escrever a minha opinião num formato mais longo e estruturado. Vou analisar todo o artigo, desmontar os argumentos e tentar fazê-lo perceber porque é que está tão desligado da realidade (e, mais especificamente, das pessoas que estiveram presentes nos protestos).

O medo

Ninguém acha que o estamos a 2 semanas do colapso da civilização, como sugere Luís Ribeiro. Ninguém (ou pelo menos será uma minoria) acredita que em 2024 vamos estar no Waterworld (o filme pós-apocalíptico em que o mundo está inundado). O que eu acredito que muita gente que esteve nos protestos pensa é, simplesmente, que há algo de profundamente errado com: 1) o sistema atual da economia mundial, 2) o comportamento das elites (financeiras e políticas) do mundo. E é muito fácil de observar: as emissões teimam em não descer.

Gráfico das emissões de CO2, mundial e anualmente, comparativamente a 2005. O gráfico mostra que a subida foi constante, exceto em 2009 e 2020, e estava, em 2021, ao nível de 25% superior a 2005. Quando esta página carrega, esta imagem está desfocada para poupar dados e energia. Podes carregar na imagem para mostrar a imagem completa.

Fonte: https://ourworldindata.org/co2-emissions. Reparem que dei “de barato” e só fui buscar emissões desde 2005 (por causa do Acordo de Paris), mas é bem pior para trás…

Porque será? Há uma magia qualquer que foi conjurada na planeta Terra que emite CO2? É improvável.

Luís escreve que “os jovens estão assustados. Acreditam que o colapso da civilização está ao virar da esquina. Não foram os cientistas que os convenceram disso”. Não sei que cientistas Luís ouve e lê, mas variados cientistas avisam todos os dias que é urgente (há já vários anos). Por isso, sim: são os cientistas que nos metem medo, e bem. Porque se toda a gente for enfiar a cabeça na areia, não saímos de onde estamos.

Gosto muito desta imagem:

Gráfico que mostra o aumento da concentração de CO2 na atmosfera, desde 1960 até 2021, variando de azul para vermelho escuro. Ao longo do gráfico, há vários pontos que mostram os anos em que houve conferências climáticas e para parar as emissões: 1972 Club of Rome Limits to Growth, 1979 First World Climate Conference, 1990 First IPCC Assessment Report, 1995 First UN Climate Change Conference, 2005 Kyoto Protocol entered into force, 2009 Copenhagen Accord, 2015 Paris Agreement adopted, 2021 Glasgow Climate Pact. Em 2021, a concentração era de quase 420 ppm, comparada com as cerca de 300 ppm em 1960. Quando esta página carrega, esta imagem está desfocada para poupar dados e energia. Podes carregar na imagem para mostrar a imagem completa.

Fonte: https://twitter.com/ClimateHuman/status/1592028682633478144

O problema aqui é a interpretação do conceito de “fim da humanidade”. E essa é a principal diferença entre mim e o Luís. Para mim, ver o Paquistão enfrentar inundações tremendas, fome em África por colheitas estragadas, etc. é o fim da humanidade. Porque o “fim da humanidade” não é preto e branco. Se assim fosse, poderiam morrer todas as pessoas no mundo menos uma pequena aldeia, que tecnicamente a humanidade não tinha terminado. O fim da humanidade, para todas as pessoas que protestam, simboliza um conjunto de eventos trágicos, em todo o mundo, que prejudicam a felicidade e bem-estar humanos, cada vez em mais larga escala.

Também é curioso que Luís se refira a uma “crise climática” como se fosse a versão suave do armagedão. A “crise climática” não é nada, é tranquila. Um problema como os outros todos. Fico curioso para saber então porque lhe chama “crise”. A meu ver, uma crise exige respostas extraordinárias (como, por exemplo, protestos…).

A agenda

Sim, é verdade que muitas (mas não todas) pessoas que defendem o clima são anticapitalistas, ou pelo menos exigem uma reforma do sistema. Mas não é coincidência. Há um argumento dado muitas vezes pelas pessoas (de direita e não só, como o ministro Costa Silva, do governo do Partido Socialista) a favor do capitalismo: melhorou imenso a vida das pessoas. “Como é que é possível estes jovens todos disputarem o sagrado capitalismo, se tirou tanta gente da pobreza?” Ou o meu favorito: “Mas ficamos todos tão ricos com o capitalismo!!”. O que estas pessoas não gostam de pensar é que talvez estejam elas próprias a ser enganadas (quem sabe, por si mesmas?). O número de pessoas a viver abaixo de $10 por dia aumentou desde 1990. Há mais pessoas a viver nesta condição do que há 32 anos. É certo que a percentagem de pessoas baixou, mas esse é outro tópico complexo que abordarei com quem o quiser discutir.

Gráfico que mostra a evolução do número (absoluto) de pessoas no mundo a viver com menos de 10 dólares por dia, desde 1990 até 2019. Em 2019 eram cerca de 4 mil milhões. Em 2002 atingiu um pico de cerca de 4.8 mil milhões, e em 2019 eram cerca de 4.5 mil milhões. Ou seja, o número de pessoas a viver com menos de 10 dólares por dia aumentou desde 1990. Quando esta página carrega, esta imagem está desfocada para poupar dados e energia. Podes carregar na imagem para mostrar a imagem completa.

Fonte: https://ourworldindata.org/poverty

Mas mesmo se dermos o benefício da dúvida a estes dados e considerarmos que a vida no geral melhorou para toda a humanidade, essa perspetiva esconde por completo o método do capitalismo. O capitalismo “externaliza” (na verdade tenta, mas não consegue, é só ilusão) os custos do seu funcionamento, para onde são difíceis de ver. O aumento do bem-estar humano global (que, de novo, contesto) foi apenas conseguido destruindo por completo a Terra. Tanto com CO2, como já foi visto, como com diversidade de ecossistemas, e por aí fora.

Ou seja, no capitalismo não encontramos uma solução para os problemas, mas sim um sistema que concentra poder e dinheiro, a qualquer custo, e que tem como efeito secundário melhorar a vida de (algumas) pessoas.

O capitalismo deu origem (devido exclusivamente à sua natureza centralizadora) a bilionários, que, coitadinhos, emitem 1 milhão de vezes mais CO2 do que a pessoa média. O capitalismo normalizou as viagens de avião no ocidente global, que poluem mais do que a Alemanha toda junta, ao mesmo tempo que é o meio de transporte mais injusto do planeta.

Gráfico que compara as emissões de gases com efeito estufa, por país, em forma de lista ordenada. 1. China, 2. EUA, 3. Índia, 4. Rússia (4.8% 1.6 GT), 5. Japão (3.3% 1.1 GT), 6. Aviação (2.9% 1 GT), 7. Alemanha (1.9% 0.64 GT), 8. Coreia do Sul (1.6% 0.59 GT). A descrição do gráfico diz: If aviation were a country, it would be one of the largest single emitters, just behind Japan and ahead of countries like Germany and South Korea. Quando esta página carrega, esta imagem está desfocada para poupar dados e energia. Podes carregar na imagem para mostrar a imagem completa.

Fonte: https://reframeaviation.stay-grounded.org/chapter-2/

Estes dados não são coincidência. São um resultado direto do sistema capitalista. Por isso, sim, é normal que as pessoas que lutam pelo clima também queiram acabar com o sistema que o destrói. A própria Greta já o disse publicamente, e, apesar de não gostar especialmente dela em relação a outros ativistas ambientais, o conhecimento que adquiriu ao longo dos últimos anos (em conversas, com a ONU, etc) deveria ter apaziguado o seu espírito anticapitalista, o que não parece ter acontecido.

Nem darei importância às acusações ao comunismo. Luís criou uma falsa dicotomia (alerta: existem sistemas diferentes do capitalismo e do comunismo!), baseada, claro, nos preconceitos acerca das pessoas que participaram nos protestos. Nas sábias palavras de Kate Raworth (que admiro imenso): “Is doughnut economics capitalism, communism or socialism? ‘Are these the only choices we have - the ‘isms’ of the last century? Can we not come up with some ideas of our own and create new names for them + see new patterns?’”. Já agora: não, a China não é um país comunista, apesar de o PCC insistir que sim (penso que uma das designações mais comuns para o regime que lá existe é “capitalismo de estado”).

Por último, tentar argumentar (indiretamente) que os EUA são uma democracia capitalista que está a fazer “acertos” é, no mínimo, engraçado (não tenho argumentos contra, só acho piada).

A exigência

“Não sei o que estes jovens querem, e desconfio que eles também não.” Aqui, não entendo Luís. Na secção anterior fala exatamente sobre o que estes jovens querem. O fim do capitalismo. Agora já não sabe, e diz que eles também não. Repito, para colar: o fim do capitalismo. Claro que esta é uma exigência vasta e de proporções monumentais, e, não podendo falar pelas pessoas que lá estavam, posso dar algumas ideias: taxar mais os ricos, incentivar mais o uso de transporte público, taxar mais as atividades poluidoras (como andar de avião e comer carne de produção massiva), incentivar as dietas à base de plantas, incentivar o consumo de comida local, aumentar a produção nacional de alimentos, roupa e outros bens essenciais, taxar (muito) mais as heranças e as propriedades imóveis, etc. Posso fazer uma lista cheia de propostas se quiserem algumas ideias do que “estes jovens querem”.

Sobre a demissão do ministro Costa Silva, não tenho muito a dizer. Pessoalmente não gosto muito dele devido a esta intervenção (aos 3:09:45) em que diz: “Já vi muitos sistemas no mundo, nenhum funciona melhor que o capitalismo”, como se tivesse acabado o trabalho de procura. Podemos arrumar tudo, que a procura por um bom sistema acabou! Já o encontramos! Boa!

Sobre o fim dos combustíveis fósseis, é fácil. Significa parar de queimar gás, carvão e petróleo, só isso. Não basta dizer que já não se queima carvão em território nacional, porque se depois vamos comprar produtos à Alemanha onde se queima carvão, vale de pouco. Os capitalistas apanharam pessoas como o Luís porque se esqueceram de lhes mostrar os dados sobre o consumo, para além dos da produção. “Como é que nos deslocamos? Como é que produzimos alimentos, como é que os transportamos? Paramos a economia? Paramos a vida? Paramos tudo?” Então e “o engenho do capitalismo”, a “inovação humana”? Não encontramos solução? Eu tenho algumas ideias, outra vez: andamos a pé, produzimos comida e energia (solar e eólica) em casa ou no bairro, vamos de comboio para os sítios. Não é preciso parar a economia, só é preciso decrescê-la (ou desacelerá-la, para quem prefere esse termo). Recomendo o livro Less Is More, de Jason Hickel, sobre este tópico (ou mesmo o perfil dele no Twitter).

Sobre “protestar quando houver tentativas explícitas” de queimar mais combustíveis fósseis. Os jovens tentam protestar antes, depois, durante. Nunca é um bom timing para ninguém. Acho que as greves só deveriam ser feitas quando fossem retirados euros diretamente do banco das pessoas. Até lá, são protestos demasiado cedo. De novo, não sei os motivos para quererem a demissão do ministro, mas ser um “homem do petróleo” com certeza não inspirará muita confiança.

O tiro no pé

Coitados dos jovens!!! Quando não protestam, não são ouvidos; quando protestam, só magoam a causa. Luís mostra um estudo. Além de ser dos EUA, o que deve influenciar muito os resultados, “esqueceu-se” de referir um dado curioso: “There are important sub-group differences in this measure of support – White respondents and Republicans were both more likely to report that these efforts decrease their support compared with Black or Hispanic and Democratic respondents.” Ou seja, estão a baixar a sua “influência positiva” junto do “inimigo” (passo o exagero, dado que estamos todos juntos para o mesmo). Mas tudo bem, aceitemos que é um ponto válido. A sugestão é continuarem a gritar em casa contra o computador (porque talvez ache que cortar ruas ou mesmo fazer barulho também seja “disruptivo”)? E quando passam 1, 2, 5 anos e não veem nada a acontecer? Sugere que tipo de protesto? Estou genuinamente interessado na resposta, porque seria bom para todos nós ter mais ideias que melhorassem o impacto em vez de diminuir.

“Fim ao fóssil” não é um tudo ou nada. Vou contar-lhe um segredo, Luís. Os combustíveis fósseis podem ser usados. A sério! Têm é de ser muito menos usados. Quando os jovens dizem “Fim ao fóssil”, pedem para que hoje se pare por completo (ou quase, claro) de os usar. Daqui a 5, 10, 20 anos, quando o ambiente estiver mais estável, a temperatura tiver diminuído um pouco, etc., logo poderá ir escavar a terra para ir buscar o resto que sobrou e queimar tudo (ao ritmo correto, claro) até não haver mais! Ninguém vai reclamar.

Para finalizar, se julga que os jovens são instrumentalizados, como jornalista da Visão, peço que reflita sobre o que os jovens julgam de si.

P.S. — Sempre que me referi a si, Luís, pessoalmente, não foi com o intuito de ofender. Usei de vez em quando discurso mais sarcástico, como ferramenta, mas espero que leia o conteúdo do texto da forma mais positiva possível. Estou só a tentar defender as minhas causas :)