Como rejeitar o capitalismo: um guia para esquerdistas
Para qualquer pessoa de esquerda é incondicional rejeitar o capitalismo. Por outras palavras, quero explicar porque é que qualquer pessoa de esquerda é também, por definição, anticapitalista, e porque é que isso é motivo para ficar contente.
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Introdução
Ninguém deverá estranhar quando digo que sou de esquerda, (eco)socialista e anticapitalista. O que talvez seja mais curioso é a quantidade de vezes que me vi enrolado numa conversa praticamente interminável com um amigo meu sobre economia, e mais especificamente sobre capitalismo. Este meu amigo é inteligente, tem experiência boa no mundo do trabalho, tem um background em gestão e estuda atualmente em Harvard. Mas há algo muito interessante sobre ele: diz-se de esquerda. As nossas discussões mais “intelectuais” (prometo que também conversamos sobre coisas interessantes) batem-se muitas vezes sobre sistemas económicos, políticos e tudo ao seu redor.
Na última conversa que tivemos, chegamos a um impasse. Ele disse-me, de novo, que é inquestionavelmente de esquerda, mas também capitalista. Eu respondi-lhe “Isso é impossível”, algo que ele, obviamente, negou. De certa forma fez-me lembrar o ex-Ministro da Economia e do Mar António Costa Silva, numa intervenção na AR: “[…] relativamente ao lucro, eu acho que nós não devemos ter preconceitos, nem para um lado, nem para o outro. E o lucro é absolutamente fundamental. Já vi muitas experiências económicas no mundo, nenhuma funciona melhor que o sistema capitalista e o sistema capitalista tem na sua base o lucro. E o lucro é essencial porquê? Porque ele cria depois emprego, providencia o desenvolvimento das civilizações. […] A distribuição da riqueza é muito importante. Temos que ter sociedades coesas e proteger os mais vulneráveis, mas nós não vamos conseguir distribuir riqueza se não discutirmos também as condições para criar riqueza, e aí o papel das empresas é fundamental, elas são motores do desenvolvimento económico e, portanto, quem tem preconceitos contra o lucro, quem tem preconceitos contra as empresas não vai de certeza criar mais riqueza; vai criar, como as experiências, aliás, demonstram, mais pobreza.”[1] Ou seja, tivemos o Ministro da Economia (e do Mar) do Partido Socialista (que este meu amigo argumenta que é um partido de esquerda), a argumentar a favor do capitalismo, contra a deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua. Penso que este exemplo mostra que não é novo ou surpreendente pessoas que se vêem como sendo de esquerda - ou, neste caso, que trabalham para um Governo de esquerda - defenderem o capitalismo. O próprio LIVRE tem na sua declaração de princípios que é socialista[2], mas, ao mesmo tempo, é incapaz de fazer uma crítica profunda ao capitalismo como sistema económico, adotando linguagem como “capitalismo desregulado” ou “predador”[3].
Porquê escrever este (longo) artigo?
Dado o contexto anterior, deve ficar claro porque senti a vontade de escrever este artigo: quero explicar porque é que, na minha opinião, qualquer pessoa de esquerda tem, necessariamente, de ser anticapitalista. Mas podemos perguntar ainda porque quero convencer o meu amigo (e não só) disto. Esse motivo, o mais fundo, é outro. Eu acredito que só depois de aceitar o capitalismo (sem adjetivações) como um sistema indesejável, pode uma pessoa de esquerda imaginar possibilidades dum outro sistema económico que quer ter. A opinião pública é moldada pelas opiniões de cada pessoa, e ao mesmo tempo estas mesmas opiniões individuais são por sua vez moldadas pela opinião pública. Ao mesmo tempo que o discurso público sobre economia e política é composto pelo conjunto de todas as nossas opiniões, o mesmo discurso público molda . A grande vitória do neoliberalismo foi, ao longo do século XX, ter hegemonizado as suas ideias de tal forma que limitou o espetro do que é possível dizer e pensar em política (e economia)[4], sem ser apelidado de “extremista”. Por outras palavras, o imaginário da opinião pública é continuamente confinado pelas vedações que nos são impostas pela ideologia dominante. Nada disto seria preocupante, claro, se essa ideologia não fosse uma das grandes causas de mal-estar da mesma população que a defende.
Depois de libertada das “rodinhas” do capitalismo, uma pessoa ganha uma nova capacidade de imaginar novos sistemas, aceitar novas políticas e até ver o ser humano de forma diferente. Por este motivo, acho tão importante entender que esquerda (como ideologia política) e capitalismo (neste caso, como sistema socioeconómico mas também como conceito construtor de ideias e cultura) são dialeticamente opostos, e não podem ser combinados. Com isto não quero dizer que apenas podem ser de esquerda pessoas anticapitalistas, mas mais que, se alguém entende que é de esquerda, o passo imediatamente seguinte é entender também que rejeita o capitalismo.
Conseguido este objetivo, o resultado não pode ser subestimado: o centro-esquerda, ou a “esquerda moderada” continua a existir, mas em moldes completamente diferentes. Não teríamos mais uma troca de argumentos no Parlamento em que um Ministro de um Governo do Partido Socialista tenta convencer uma deputada do Bloco de Esquerda e economista[5] porque é que o capitalismo é o melhor sistema económico que temos, e poderíamos, quem sabe, ter um Parlamento onde a esquerda discute qual o nível certo para o IRS, quanto investir na cultura e como, em conjunto, travar o crescimento do CHEGA. Também “nas ruas” o ganho seria tremendo: as minhas conversas com o meu amigo poderiam deixar de ser sobre se PPPs são ou não de esquerda, e poderia começar a ser sobre como implementar de forma eficaz um programa de habitação pública abrangente.
Poderão responder que é uma luta inútil, e que cada pessoa formará a sua própria opinião, que poderá ser tão variada quanto a sua personalidade e experiências. E, sendo verdade que cada pessoas terá a sua visão do mundo atual e do que quer para o futuro, também é verdade que a esquerda é caracterizada pela necessidade de união. Não será nenhuma parte da direita a preocupar-se com união ideológica e organização de movimentos. Para a extrema-direita, quanto mais dividas as sociedades, melhor conseguem atacá-las nos seus pontos fracos. Quanto à direita democrática[6], continuam (erradamente) convencidos de que a cultura individualista que espalharam até hoje é sustentável[7]. Cabe, então, à esquerda entender que é na sua cooperação, tanto a nível parlamentar como na sociedade, que estará uma das chaves para a sua vitória sobre a direita, e, mais no imediato, sobre as tendências fascistas presentes[8].
A estrutura do texto
Para facilitar a leitura e estruturar os meus pensamentos, assim como os de quem leia o artigo, achei útil explicar como o vou estruturar. Para começar, a tarefa árdua, mas importante, de definir conceitos. Será nesta primeira secção que vou estabelecer o que é o capitalismo e o que é a esquerda. Esta tarefa, só por si, já daria duas teses de doutoramento em economia política e ciência política, respetivamente; ainda assim, darei o meu melhor a sublinhar as ideias mais importantes, para que possamos seguir em frente a partir de uma base comum. De seguida, mostro porque estes conceitos (capitalismo e esquerda) são incompatíveis, e porque ninguém que queira ser coerente ou ter uma conversa política consequente pode dizer que apoia os dois ao mesmo tempo. Por último, e não menos importante, tento convencer os leitores de que, depois de resolvido o paradoxo, podem finalmente começar a pensar sobre a sua “esquerdice” como um baú de possibilidades, e não como uma limitação.
Tentando definir os conceitos
Capitalismo
A definição de capitalismo deu, ao longo da história, muitas voltas. Fernand Braudel aponta Louis Blanc como a pessoa que primeiro inventou o termo capitalismo[9], mas menciona também Pierre-Joseph Proudhon, William Makepeace Thackeray e, claro, Karl Marx[10], entre outros. Após esse pequeno contexto histórico, Braudel explica como as definições mais comuns encontradas atualmente, como a da Britannica[11], em muito coincidente com a da Infopédia, da Porto Editora[12], que define capitalismo (em contexto económico[13]) “regime económico caracterizado pela propriedade privada dos meios de produção, pelo predomínio do capital enquanto elemento produtivo e pela existência de um mercado livre orientado para a obtenção de lucro”, não são suficientes para caracterizar aquele sistema económico. Isto porque, realça Braudel, “sistemas largamente baseados na propriedade privada, no lucro e nos mercados, podemos encontrar muitos exemplos antes da era medieval.” [tradução feita por mim] O que Marx trouxe de novo à discussão foi a adição de dois novos elementos — o trabalho salariado e as relações laborais — que nos deram um novo olhar sobre o mesmo sistema.
Assim, Braudel oferece uma definição baseada em toda a sua pesquisa: um sistema de produção que tenha as seis seguintes características: (1) um sistema legal que suporte os direitos e liberdades de possuir, comprar e vender propriedade privada, (2) mercados e trocas de mercadorias, largamente difundidos, que envolvam dinheiro, (3) posse privada dos meios de produção por empresas que produzem e vendem bens ou serviços em busca de lucro, (4) a maioria da produção afastada e organizada separadamente da casa e da família, (5) disseminação de trabalho salariado e contractos de emprego e (6) um sistema financeiro desenvolvido, com instituições bancárias, o use generalizado de crédito usando propriedade como garantia e a venda de dívida.
Em 2015, o IMF publicou um artigo[14], com o subtítulo “Mercados livres podem não ser perfeitos, mas são provavelmente a melhor maneira de organizar a economia” [tradução feita por mim], onde é dito que ‘A característica essencial do capitalismo é a motivação para gerar lucro. Como Adam Smith, o filósofo do século XVIII e pai da economia moderna, disse: “Não é a partir da benevolência do talhante, do cervejeiro ou do padeiro que podemos esperar o nosso jantar, mas da sua preocupação com o seu interesse próprio.” Ambas as partes na troca voluntária têm o seu interesse pessoal no resultado, mas nenhuma pode obter o que quer sem ter em conta o que a outra parte quer. É este interesse próprio racional que pode levar a prosperidade económica.’ [tradução feita por mim]. Nesse artigo, o capitalismo é definido como tendo os seguintes seis pilares: (1) propriedade privada, que permite pessoas terem bens tangíveis como terrenos e casas, e bens intangíveis como ações, (2) interesse próprio, através do qual as pessoas agem em busca do seu próprio bem-estar, sem consideração pelas pressões sociopolíticas; no entanto, estes indivíduos não coordenados acabam por beneficiar a sociedade como se fossem guiados por uma mão invisível (citando Wealth of Nations de Adam Smith), (3) competição, através da liberdade das empresas de entrarem e saírem dos mercados, maximiza o bem-estar social, isto é, o bem-estar comum de produtores e consumidores, (4) um mecanismo de mercado que determina preços de uma forma descentralizada, através de interações entre compradores e vendedores — os preços, por sua vez, alocam recursos, que naturalmente procuram a maior recompensa, não só para bens e serviços, mas também para salários, (5) liberdade de escolha no que toca ao consumo, produção e investimento — clientes insatisfeitos podem comprar produtos diferentes, investidores podem procurar projetos mais lucrativos, trabalhadores podem desistir dos seus trabalhos por melhores salários e (6) um papel limitado do governo, que protege os direitos dos cidadãos e mantém um ambiente ordeiro que facilita o bom funcionamento dos mercados.
As duas definições acima (em conjunto com as muitas mais que são citadas nas suas fontes), ajudam a solidificar a ideia de que, mesmo cerca de 200 anos depois do seu começo, ainda não conseguimos chegar a um consenso sobre o que é o capitalismo. Isto mostra, também, a dificuldade geral de chegar a definições finais nas ciências sociais, da qual a economia faz parte. Permitam-me, por isso, acrescentar outras ideias que penso serem relevantes.
Entendendo o capitalismo mais profundamente
Primeiro, é crucial entender que o capitalismo, ao longo do tempo, e talvez até mesmo desde a sua conceção, não tem sido apenas um sistema económico; é, para além disso, um sistema social e cultural, espelhado em praticamente todas as interações que as pessoas (individuais e coletivas) têm entre si e com o mundo que as rodeia. Para isto, é necessário analisar o capitalismo não através da lente da economia, mas sim da economia política. A economia política estuda, com a participação de várias ciências sociais — economia, ciência política, sociologia, entre outras —, a interação entre pessoas e a sociedade, e entre os mercados e o Estado[15]. Se o fizermos, estaremos mais aptos a entender que o capitalismo é muito mais do que uma série de equações sobre procura e oferta, mas sim um modo de organizar a sociedade como um todo, assim como o imaginário de cada um de nós. Na sua tese de doutoramento, Timothée Parrique ajuda-nos a entender como é que a sociedade onde vivemos molda as nossas ideias políticas; não só aquilo que achamos bem, mas, na verdade, aquilo que achamos possível de todo[16]. E não é apenas esta visão do “imaginário político”, mas também, numa realidade mais imediata, o impacto que o capitalismo, em todas as suas formas (com especial ênfase no neoliberalismo), tem no nosso dia-a-dia. O cursos que escolhemos na universidade, os trabalhos a que nos candidatamos, a forma como nos relacionamos com amigos e amigas, como, quando e onde construímos uma família: todas estas coisas, e mais, estão sob a alçada do sistema capitalista, por vezes sem nos darmos conta disso. Claro, não é de estranhar; um sistema socioeconómico, ainda por cima um tão abrangente como é o capitalismo, teria sempre um impacto gigante nas nossas vidas. O importante a reter é que apenas quando nos apercebermos da influência que o sistema tem em nós, poderemos pensar melhor sobre as decisões que tomamos, as ideias que temos, e, mais importante ainda, se concordamos ou não com o sistema onde nos encontramos[17].
Em segundo lugar, quero apresentar o argumento que o sistema capitalista tem uma base ideológica ainda mais profunda, que se revela uma precondição para o seu funcionamento: o individualismo. Como disseram Oliver Brockmann e Paul Michael Garrett, “em termos muito básicos, o núcleo da teoria neoliberal é a ideia de que o mercado livre é a melhor maneira de organizar uma economia global, controlada por um enquadramento regulatório de procura e oferta e pela motivação do auto-interesse dos indivíduos.”[18] [tradução feita por mim]. Também Stephanie Lee Mudge realçou que “Em todos os seus modos, o neoliberalismo está assente num princípio único e fundamental: o da superioridade da competição individualizada e baseada em mercados, em prol de outros modos de organização. Este princípio básico é a marca distintiva do pensamento neoliberal […]”[19] [tradução feita por mim]. Para podermos concordar neste ponto, teremos também que concordar na premissa de que o neoliberalismo é apenas a expressão mais recente (e generalizada) do capitalismo; quase como se fosse a incorporação atual, mas não a única. Citando de novo Stephanie Lee Mudge, no mesmo artigo citado anteriormente, “A estória poderia ser elaborada extensivamente, mas um breve resumo defende o argumento. A Depressão e as Guerras Mundiais suscitaram um debate amplo entre as elites, em particular entre intelectuais […]. Neste contexto, o economista austríaco Friedrich von Hayek tornou-se o centro carismático de uma rede de pensadores laissez faire — um grupo que se distinguia pela sua rejeição do argumento largamente aceite de que o capitalismo descontrolado teria sido a raíz do colapso da Europa” [tradução feita por mim]. Este individualismo está, na realidade, presente em muitas das características que vimos acima como definidoras do sistema capitalista.
Por último, olhemos a necessidade de crescimento constante. Esta característica, na realidade, não é mais do que uma implicação das outras listadas acima. Como disse Giorgos Kallis, “Crescimento é o que o capitalismo necessita, conhece e faz.”[20] Falamos, claro, de “crescimento económico” ou o crescimento do PIB, de um país, região ou a nível mundial. O meu argumento é que isto é verdade por, essencialmente, dois motivos. Como explica Timothée Parrique na sua tese The Political Economy of Degrowth (citada acima), a principal — de facto, a única — ferramenta que hoje usamos medir a qualidade duma economia no espaço público, o PIB, não mede o que uma economia é, “mas sim uma ideia do que a economia é.”[21] Certamente não será estranho a ninguém quando digo que o “crescimento económico” está distintamente à frente de todas as conversas sobre a prosperidade do nosso país (e não só). Uma rápida pesquisa nas principais fontes de informação portuguesas revela títulos como ‘“Devíamos crescer a 3,9% nas próximas duas décadas”, defende Vasco de Mello, presidente da BRP’[22] ou “Os grandes falhanços de Abril, do crescimento à pobreza” (com o subtítulo ”Portugal só cresceu a mais de 5% durante oito anos e continuam a estar em risco de pobreza mais e dois milhões”)[23]. Depois de criada a base ideológica para a população atribuir — muitas vezes inconscientemente — ao crescimento económico uma conotação inquestionavelmente positiva, entendemos porque se torna uma quase necessidade que a economia cresça[24].
Se por um lado existe uma pressão constante para o crescimento pela convicção de que este é desejável, por outro, eu argumento, existe também uma motivação para o crescimento inerente ao sistema capitalista, nascida de uma das suas características basilares: o lucro. Apesar de o lucro ser identificado como basilar por praticamente todas as definições de capitalismo, quase nenhuma[25] toca no aspeto da acumulação de capital, algo que considero um sério lapso. Uma implicação da existência — aliás, da centralidade — do lucro numa sociedade capitalista é a acumulação de capital. Já Adam Smith dizia que “[…] acumular capital é uma condição essencial para o progresso económico. Ao poupar parte do que produzimos em vez de o consumir imediatamente, podemos investir em equipamento novo e dedicado que reduza a necessidade de mão-de-obra. Quanto mais investirmos, mais eficiente se torna a nossa produção. É um ciclo virtuoso.”[26] [tradução feita por mim]. Também Howard Curtis Richards notou que “A ‘acumulação’ designa tanto a lógica do capitalismo como a dinâmica que o guia.”[27] [tradução feita por mim]. No mesmo artigo, Richards traz à superfície um outro problema: “Mas a economia liberal é uma poção tóxica. Ela destrói comunidade mais do que a constrói. Sufoca a diversidade e impõe as mais cruas e violentas formas de injustiça cognitiva. O seu imperativo para o crescimento e a sua necessidade sistémica de criar condições para a acumulação de capital e cada vez mais acumulação de capital estão a matar a biosfera muito rapidamente […]” [tradução feita por mim][28].
Ou seja, o lucro, como característica fundamental do capitalismo, tem duas grandes consequências: a acumulação de capital e a pressão sistémica para o crescimento contínuo e tendencialmente infinito. Em sua parte, a motivação para o lucro irá, inevitavelmente, traduzir-se no facto da riqueza — ou capital — ficar cada vez mais concentrada numa pequena percentagem da população. Não será estranha esta conclusão, dados não só os conceitos base do capitalismo individualista apontados por Adam Smith, mas também o histórico da evolução da desigualdade, tanto entre países como dentro deles[29]. Algo a sublinhar também é que, ao contrário do que as teorias económicas ortodoxas — ou pelo menos como elas se expressam no discurso público — nos dizem, a acumulação de capital não é apenas um processo económico e, acima de tudo, um processo isolado. Uma precondição para a motivação para acumular capital é a posse de capital relativa às outras pessoas, empresas ou países (dependendo da escala de que falamos). Capital é poder; nenhum bilionário realisticamente aceitaria que todas as pessoas se tornassem bilionárias também, assim como os EUA ou a China não aceitariam que todos os países atingissem o seu nível de riqueza: o seu capital relativo aos outros agentes (pessoas, países, etc.) é o que confere ao próprio capital o seu valor.[30] Assim, num sistema capitalista, a acumulação de capital é um jogo de ganhadores e perdedores. A segunda consequência, a pressão sistémica para o crescimento contínuo, é também clara. A natureza do capital é auto-reprodutiva. O único propósito de qualquer detentor de capital, em relação a este, é reproduzi-lo. A partir de capital criar capital. Investir, comprar ações, imóveis, vender crédito; na verdade, qualquer coisa que multiplique o capital.
Após esta longa secção, espero ter tornado claro como, para além das suas definições clássicas ou dominantes (no espaço público), o capitalismo apresenta certos traços cruciais para a minha análise da sua incompatibilidade com a esquerda. Iremos, pois, explorar essa incompatibilidade mais à frente.
Esquerda
- Aos 3:09:45: https://canal.parlamento.pt/?cid=6265&title=reuniao-plenaria.
- https://partidolivre.pt/declaracao-de-principios-2-2
- Foi difícil encontrar o LIVRE a criticar o capitalismo, mas fizeram-no no programa de 2014 e, na minha pesquisa, encontrei várias ocasiões onde o Rui Tavares se mostrava sempre contra o capitalismo “adjetivado” mas nunca contra o sistema económico em si. O seu blog tem vários exemplos, este é apenas um deles.
- Ver: https://www.theguardian.com/news/2017/aug/18/neoliberalism-the-idea-that-changed-the-world
- O facto de ser economista doutorada não faz com que a Mariana Mortágua esteja sempre certa, mas ajuda a entender que, se tem as opiniões que tem, não será, provavelmente, por falta de conhecimento.
- Em Portugal representada pela IL, CDS e PSD, entre outros partidos e movimento sem assento no Parlamento.
- No livro Trolling Ourselves to Death, Hason Hannan expõe de forma elegante como o modelo capitalista neoliberal apenas poderia resultar na sua implosão. Não pela vertente económica, como tentou prever Marx, mas pela vertente cultural. Esta não foi a tese do seu livro, mas sim a minha interpretação.
- Quanto à pergunta “Não estarei eu próprio a contribuir para a divisão da esquerda ao escrever este artigo?”, a minha resposta é claramente “Não.” Não podemos esquecer que a minha tese inicial, que está na origem deste texto, é que ser capitalista e de esquerda é um paradoxo, que fará qualquer pessoa, no melhor dos casos, confusa sobre onde se senta no espetro político, e, no pior dos casos, envenenar movimentos de esquerda por dentro, se sequer se dar conta disso. Eu argumento que ser capitalista não é o mesmo que ser a favor de um Estado maior ou mais pequeno (como é a discussão por exemplo entre comunistas e anarquistas), mas antes um facto inconciliável, como um prisioneiro pedir por piores condições na sua prisão: terá todo o direito de o fazer, mas gostaria de fazê-lo entender o erro comete.
- Em Conceptualizing Capitalism: Institutions, Evolution, Future, Braudel cita o livro Organisation du travail (p. 161) de Blanc: ’[…] onde Blanc (1850, 161) escreveu acerca da “falácia” da “utilidade do capital” ser “perpetuamente confundida com o que eu chamo de capitalismo, ou por outras palavras, a apropriação de capital por umas pessoas, em exclusão de outras.”’ [tradução feita por mim]
- Marx usou ostensivamente os termos “modo de produção capitalista” e “capitalistas” (referindo-se aos detentores do capital), mas muito pouco a palavra “capitalismo” em si.
- https://www.britannica.com/money/capitalism
- https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/capitalismo
- Em contexto político define como “regime no qual o poder político está na dependência dos detentores de capitais”.
- Escrito pela economista Sarwat Jahan (que foi em 2022 nomeada Residente Representante do IMF no Sri Lanka): https://www.imf.org/en/Publications/fandd/issues/Series/Back-to-Basics/Capitalism
- https://www.britannica.com/money/political-economy
- https://www.researchgate.net/publication/339844751_The_Political_Economy_of_Degrowth
- Se é verdade que nenhuma pessoa sozinha é capaz de mudar um sistema, também é verdade que a mudança, até sistémica, se consegue quando pessoas a implementam. Muitas terão sido aquelas que, ao acordar todos os dias na ditadura do Estado Novo, não imaginavam a possibilidade de viver o seu fim. No entanto, ele chegou, mais tarde ou mais cedo, pelas mãos (e cabeças) de pessoas que imaginaram esse fim.
- https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13691457.2022.2040443
- https://academic.oup.com/ser/article/6/4/703/1739555?login=false
- https://www.countercurrents.org/kalis111115.htm
- Houve, por exemplo, uma escolha ativa de não incluir atividades ilegais como a prostituição. Este tipo de escolhas mostram como os números que consideramos “objetivos”, principalmente em economia, nunca estão isentes de subjetividade.
- https://expresso.pt/semanario/economia/2024-04-24-deviamos-crescer-a-39-nas-proximas-duas-decadas-defende-vasco-de-mello-presidente-da-brp-6cd14fc1, publicado a 24/04/2024.
- https://expresso.pt/economia/2024-04-24-os-grandes-falhancos-de-abril-do-crescimento-a-pobreza-b22c99b2, publicado também a 24/04/2024. Especialmente dececionante, a meu ver, quando uma revolução que acaba um regime fascista é atribuído com o “falhanço” do crescimento insuficiente nos 50 anos seguintes…
- Por vezes também é possível avistar o termo “acelerar”, no que toca à economia. Parrique expande este assunto na sua tese, e como o vocabulário usado impacta a nossa visão do crescimento económico.
- Com a notável exceção do primeiro parágrafo da Wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Capitalism
- https://www.adamsmith.org/the-wealth-of-nations/
- https://www.researchgate.net/publication/271937379_Unbounded_organisation_and_the_future_of_socialism
- O impacto do capitalismo na Natureza será mais explorado na segunda parte do artigo.
- Ler, por exemplo, Capital no Século XXI, de Thomas Piketty.
- Isto não se aplica em todas as escalas. Uma pessoa “normal” pode querer uma casa, e não ter o menor problema com que todas as outras pessoas do mundo também tenham uma. Falamos aqui de níveis de riqueza superiores, onde a dinâmica de poder é a principal atração do capital. Um capitalista só tem poder para exercer a sua vontade sobre trabalhadores duma das suas empresas porque detém o capital, assim como os EUA só têm poder para exercer a sua vontade sobre, por exemplo, países de baixo rendimento, porque detém o capital (por vezes o capital bélico tem um efeito especial nesta dinâmica…)