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O caso dos despedimentos (de mães recentes) no Bloco de Esquerda

Não é possível desculpar más condutas. Mas é possível entendê-las e colocá-las em contexto.

• 11 min

Depois da notícia original, que lançou para conhecimento público os despedimentos que aconteceram no Bloco de Esquerda depois das eleições de 2022, o assunto já deu muitas voltas — cada uma delas pior para o Bloco —, com vários meios de comunicação a publicarem novas informações e perspetivas.

Recomendo a leitura própria dos vários artigos, para um conhecimento mais profundo do caso, mas os factos que sabemos ao dia de hoje (02/02/2024) são, resumidamente, os seguintes: a seguir às eleições legislativas de 2022, em que o Bloco perdeu 14 deputados/as, ou 74% do grupo parlamentar, o partido viu-se forçado a despedir vários/as trabalhadores/as (cerca 30, ao que sei). Até aqui, nada de impressionante, à exceção, talvez, da queda em flecha do Bloco[1].

O enorme problema surge quando olhamos para os detalhes de como tudo se desenrolou. Despedimentos por telemóvel ou vídeo-chamada, muito pouco cuidado — tanto no sentido de cautela, como no sentido de tratamento —, com alguma brutalidade, segundo o que nos é descrito pelas duas trabalhadoras que estão no centro da polémica. Estas duas trabalhadoras estão no centro do caso porque, aquando dos despedimentos, eram mães recentes; uma delas com uma criança de dois meses, a outra com uma criança de nove meses, ambas a amamentar. Por cima disto, há muitas dúvidas sobre a legalidade e moralidade do processo. O Bloco fez uns contratos temporários, alegadamente benéficos para as trabalhadoras, para não deixá-las sem chão. Estes detalhes são críticos, e até já parece haver uma investigação do Ministério Público em curso.

Em suma, o caso avançou incrivelmente rápido e, em apenas alguns dias, o Bloco vê-se em muito más águas. Mas não quis escrever este texto para, como todas as outras pessoas nos comentários do Expresso e do Público (e até as próprias trabalhadoras, por vezes), atacar o Bloco por “fazer igual aos patrões que critica”, “hipocrisia” ou por “vícios privados, públicas virtudes”. Vim escrever porque estou mais interessado em fazer um pequeno apontamento de uma falácia nesses argumentos, mas, mais importante, analisar este caso como um sintoma de um sistema maior[2].

Primeiro: não, tudo isto não é igual a despimentos em empresas (principalmente grandes e gigantes), pelo simples motivo de que os partidos, em teoria, não têm a função de criar lucro, logo os seus trabalhadores não são, por definição, explorados para o lucro do patrões ou acionistas. É certo que se pode argumentar que a exploração existe na mesma, mas ao invés do lucro, ela serve a procura de poder dos dirigentes partidários ou outros agentes equivalentes, que usam o aparelho partidário para chegar a altos cargos estatais ou governamentais. E é muito possível que seja verdade. Mas, ainda assim, as estruturas sociais e incentivos são diferentes.

No entanto, esta hipótese permite-nos colocar este episódio no meio do sistema maior que é a política partidária em Portugal e no conjunto das chamadas democracias liberais. O Bloco, como qualquer outro partido político, está em competição constante pelos votos da população. Esta é uma verdade universal e inevitável. Enquanto haverá, certamente, membros de certos partidos — geralmente dos mais ideológicos, como o Bloco, a Iniciativa Liberal ou o Partido Comunista — que dirão que lutam por valores concretos e nos quais acreditam verdadeiramente, o sistema de voto e partidário das democracias cria pressões fortes sobre os partidos e quem os dirige.

Isto tem duas implicações, uma mais óbvia e uma mais subtil. A mais óbvia é o clássico jogo político de cedências e vitórias, em que os partidos sacrificam certas políticas por uma posição com mais impacto num Governo, ou adaptam a mensagem para tentarem captar mais votos, mesmo que isto implique não serem 100% honestos com o eleitorado (o chamado spin político). Este jogo é conhecido por toda a gente e até acontece nos níveis mais básicos de interações humanas. Acontece dentro de famílias, dentro de empresas, em grupos de amigos/as, etc. Quem nunca tenha estado envolvido, ou pelo assistido, num “drama” que atire a primeira pedra.

A segunda consequência está mais entranhada. Há uma necessidade constante para andar mais rápido. Trabalhar mais horas. Criar mais publicações nas plataformas (antis)sociais. As pessoas entram em burnout. Fazem-se despedimentos da pior maneira possível. Tomam-se decisões moralmente dúbias sobre esconder informações, sacrificando a transparência. Sempre sobre a pressão de se ser substituído/a: “se não fizermos isto, vamos ficar sem dinheiro para a próxima campanha e vamos perder Câmaras Municipais”, “se não cederes neste ponto, vão pedir a tua demissão e a tua carreira política acaba; vais deixar de ter o impacto no Mundo pelo qual lutaste até hoje”, e por aí fora. Nada disto serve para desculpar as más decisões tomadas dentro do Bloco; as pessoas que as tomaram são responsáveis e estavam de plena consciência e lucidez. Serve, sim, para entendermos que essas mesmas pessoas agem dentro de um sistema maior do que elas, que as pressiona em certas direções e que até as fazem sentir-se condicionadas e obrigadas a tomar certas decisões para se manterem nas suas posições ou subirem na escada da política partidária.

E aqui temos de fazer um pequeno desvio. É crucial fazer uma distinção entre atores políticos: é possível que, genuinamente, várias pessoas nos partidos, mesmo em cargos de direção, achem que os compromissos (trade-offs) que estão a fazer são pelo bem comum, e que há que partir alguns ovos para fazer a omelete. Por outras palavras, o Bloco também é um partido como os outros todos, e faz realpolitik quando é preciso. Há até uma nova lista interna no Bloco que (em teoria…) se opõe à falta de democracia interna. Sendo que este claramente não é um caso de realpolitik, é verdade que é um reflexo de o partido estar inserido num ambiente onde os partidos “matam ou morrem”[3].

Mas, então, o que retirar de toda a situação? Na minha opinião, é simples: o sistema partidário está falido. Não penso que este artigo seja o melhor espaço para entrar em mais detalhes, mas consigo apresentar algumas ideias. Precisamos de assembleias cidadãs/civis. Precisamos de menos poder concentrado nos partidos políticos, todos (o que não significa menos poder para o Estado!) Precisamos de mudar completamente o sistema de voto, começando pelos círculos eleitorais e passando pela importância cultural das sondagens.

Acima de tudo, precisamos de uma revolução. Não uma invasão do Palácio de São Bento. Uma revolução cultural. Precisamos de uma revolução na educação, na comunicação social, nas estruturas de produção e distribuição de poder. Precisamos de uma revolução moral e filosófica na sociedade Ocidental. Tudo isto demorará tempo. Até lá, o Bloco sai magoado. Esperemos que seja mesmo caso para uma profunda reflexão interna.

Como nota final, gostava de deixar uma sugestão de visualização. Borgen é uma série dinamarquesa sobre os bastidores do parlamento e do do governo dinamarqueses. Prende-me à televisão e, apesar de talvez ser um pouco dramática demais de vez em quando, parece ser uma representação bastante fidedigna do que se passa por detrás de portas fechadas na alta política nacional. Menciono esta série por causa duma parte específica da carta escrita por uma das mães despedidas:

1. O bloco é, de facto, um partido feminista? Quantas mães de crianças pequenas há nos lugares de decisão? Quantos homens há por trás de cada decisão comunicada por mulheres? Onde estavam as feministas do bloco há três anos? Onde estão elas agora?

2. O bloco é, de facto, um partido de trabalhadores e trabalhadoras? Onde estão eles e elas nos lugares de decisão política, dentro do partido e nos seus lugares de representatividade?

Mães, trabalhadoras/es e os/as demais não se encontram no topo da pirâmide, precisamente porque o sistema os/as expulsa antes de lá chegarem. Temos um sistema em que “parar é morrer” e não há espaço para erros. Nas empresas, os psicopatas são sobre-representados nas posições de topo. Porque haveríamos de achar que a tendência seria muito diferentes em partidos, se o sistema onde operam é idêntico?


  1. Apesar da perda de 74% do grupo parlamentar, o Bloco perdeu “apenas” metade dos votos. Passou de ~500.000 para ~250.000
  2. Quero lembrar que, como estudante de dinâmica de sistemas e aspirante a pensador de sistemas, encontro-me muitas vezes à procura do sistema subjacente.
  3. Veremos como, por exemplo, o LIVRE se adaptará ao longo do tempo.