“Somos uma família pobre”: como o caso da Nobre é um sintoma da doença capitalista

Depois das manifestações e greves dos trabalhadores e trabalhadoras da Nobre Alimentação, fica mais uma vez claro que a máquina de gerar lucros que é o capitalismo não cumpre o seu propósito na sociedade.

• 17 min

Recentemente, com grande taxa de adesão, as trabalhadoras e trabalhadores da Nobre Alimentação - conhecida pelo fabrico de enchidos - organizaram greves e manifestações, utilizando essas ferramentas fundamentais para expressar o seu profundo descontentamento em relação à empresa. Lutam por salários mais altos, carga horária mais baixa e mais dias de férias, para além de um sistema de progressão nas carreiras que, até agora, parece ser completamente inexistente. Nas manifestações, a falar à comunicação social, uma das funcionárias afirma que a empresa criou um lema interno que usava para comunicar às pessoas que lá trabalham: “Somos uma família Nobre”. As manifestantes aproveitaram para virar este lema do avesso e trazê-lo para a realidade que conhecem: “Somos uma família pobre”.

Neste artigo, pretendemos amplificar a voz das trabalhadoras que ali defendem e lutam pelos seus direitos, ao analisar como este caso específico é não mais do que uma manifestação do sistema capitalista a funcionar. Para isso, tomamos quatro principais aspetos da situação da Nobre: a inércia em subir os salários (apesar dos lucros milionários), as vendas frequentes da empresa a vários conglomerados multinacionais, o lema que tenta incutir às trabalhadoras e como estas foram intimidadas por se unirem. Iremos também expor a posição do DiEM25[1] sobre este assunto, e o que acreditamos ser uma maneira melhor de organizar a força de trabalho, de forma mais justa e eficiente.

A inércia na subida dos salários

Na reportagem acima linkada, é dito que a esmagadora maioria da força de trabalho da Nobre recebe o ordenado mínimo permitido por lei. Isto pode, à primeira vista, parecer uma exceção à regra, ou uma pequena maçã podre no meio do que é o pomar sagrado do mercado capitalista, mas não: são as mais básicas regras e mecanismos do capitalismo a funcionar. A força de trabalho - as pessoas - são um recurso como qualquer outro; o seu custo deve ser minimizado, de forma a maximizar o lucro que pode ser extraído de uma empresa. Isto é provavelmente intuitivo: quem tem o poder (em jargão económico, o capital) vai querer mantê-lo e até querer mais. Concretamente, isto acontece através da extração de lucros de empresas. Esta extração é feita, entre outras coisas, da força de trabalho da qual os donos das empresas e os seus acionistas dependem. Por definição, no capitalismo, os trabalhadores e trabalhadoras não recebem o salário que corresponde ao seu contributo para a sociedade e para a economia. E é daí que os acionistas retiram o seu lucro. Não é por acaso que de 2020 para 2021, os lucros da Nobre tenham aumentado, enquanto que o custo com pessoal tenha diminuído.

Vendo deste prisma, percebemos que os salários baixos não são mais do que a escolha “racional” do empregador: para maximizar os lucros dos acionistas, terá que minimizar os salários de quem, de facto, produz a riqueza, por muito altos que estes sejam. No caso da Nobre, como em tantos outros sítios por Portugal, pela Europa e pelo mundo fora, isto é verdade. E não o deixará de ser enquanto não mudarmos radicalmente o nosso sistema económico.

Queremos frisar que é, sim, uma escolha. Uma escolha consciente e deliberada, feita por um pequeno grupo de pessoas, que tem todo o interesse em perpetuar a sua posição de poder. A função da gestão intermédia (como por exemplo gerentes de secção, etc) nestas decisões é um tópico interessante, e seria tema para um outro artigo.

As vendas ao capital multinacional

Outro aspeto notado na reportagem é a notória degradação das condições das trabalhadoras, desde a venda da empresa a gigantes multinacionais. Desde que saiu da posse da família original (adivinhe-se, a família Nobre), a empresa de alimentação já passou, entre outras, por mãos espanholas, chinesas, até chegar aos seus atuais donos, um grupo mexicano chamado Sigma (que, por sinal, pertence, por sua vez, a uma corporação chamada alfa).

Querendo ser intelectualmente honestos, notamos que não é certo que, ao sair da casa de família para o escritório internacional, uma empresa vá criar piores condições para quem lá trabalha. Mas o que sabemos é que o problema é sistemático e que, regra geral, um grupo só chega aos 2 mil milhões de euros de lucro, como a alfa chegou, quando sabe, e bem, aplicar as regras que vimos acima, tornando-se proficiente em extrair o máximo valor de onde conseguir, incluindo das pessoas.

O que é de relevar aqui é que, no mercado internacional dos “billions”, as pessoas são um mero produto. Da mesma forma que eles compram e vendem fábricas, maquinaria e terrenos, também compram pessoas (e, diga-se de passagem, animais). Passamos a ser apenas mais uma célula na sua ultra-eficiente folha de Excel. Por vezes compensa comprar-nos, por vezes não. Tudo depende dos interesses dos compradores. E quando somos uma célula numa folha de Excel, o que pode ser dito acerca da vontade dos nossos novos donos de zelarem pela nossa felicidade e bem-estar? O objetivo é um, e um só: aumentar o número na última linha da folha.

“Somos uma família Nobre”: a tentativa de lavagem cerebral

Internamente, a gestão da Nobre tenta convencer à força os trabalhadores e trabalhadoras de que pertencem a uma família; de que estão todas lá para o mesmo; de que é preciso fazer sacrifícios pelo bem maior da empresa. Esta tática é utilizada internamente dentro de empresas como a nível mais sistemático, pela sociedade e mundo do trabalho em geral. Serve como uma tentativa, muitas vezes conseguida, de tornar os trabalhadores mais “dóceis”, fazendo com que, por exemplo, se torne taboo falar sobre salários com as colegas - dado que toda a gente deve trabalhar por amor à camisola ou, neste caso, à família - ou que surja um sentimento de culpa ou traição por queremos pertencer a sindicatos ou organizar greves, assunto discutido na secção seguinte.

É positivo as pessoas gostarem do seu trabalho, dos seus colegas e chefes. Mas como se diz no mundo do cinema “show, don’t tell” (“mostra, não digas”). É preciso que esse gosto, esse prazer pelo trabalho e pelas pessoas que nos rodeiam surjam organicamente. Um bom primeiro passo para o conseguir é que as pessoas trabalhem a fazer o que gostam. Algo pelo qual sintam uma paixão muito pessoal. Um bom segundo passo são salários dignos. Salários que valorizem as pessoas pelo seu trabalho. Salários que permitam com que as pessoas não só sobrevivam, mas vivam; se divirtam, consigam ter momentos de lazer. Acima de tudo, o salário deve refletir o valor real que a pessoa traz à empresa e, consequentemente, à sociedade. Se isso for conseguido, estamos no caminho certo.

Esta posição de querer impor às pessoas uma vontade artificial de cumprir o seu dever é-nos aplicada não só como trabalhadores, mas também como consumidores. A pressão constante para consumir que nos entra pela mente dentro todos os dias vem da mesma fonte. E que etapa mais importante numa sociedade de consumo em massa, do que convencer as pessoas de que têm de produzir em massa, pelo bem da sua “família”?

É de louvar o génio do marketing que, pela primeira vez, se lembrou de usar a expressão “família” desta forma. Para muitas de nós a família é um aspeto nuclear da vida. São pessoas pelas quais temos emoções muito fortes, muitas vezes positivas, mas, acima de tudo, uma ligação intangível quase inegável. Sacrificamo-nos por família, mesmo quando discordamos. Sentimos uma forte vontade de a ajudar a superar qualquer desafio, mesmo depois de passar por maus momentos. Não é, por isso, coincidência, que as empresas não usem termos como “comunidade” ou “vizinhança”. A “família” toca-nos num lugar especialmente profundo, do qual se tentam aproveitar.

A política de intimidação como recurso de desespero

Chegado ao ponto em que as trabalhadoras e trabalhadores conseguiram organizar-se, mais uma vez, e criar estes dias de manifestação e greve, vemos imediatamente a reação natural por parte da gestão: o medo. Medo de perderem capacidade de produzir produtos, através das greves; medo de perderem margem de lucro, ao serem pressionados, pelas manifestações e pela sociedade, a subirem os salários; mas, acima de tudo, medo que as suas trabalhadoras se unam.

O trabalhador favorito de um acionista é o trabalhador solitário; aquele que não comunica com os seus colegas, aquele que não é confrontado com a sua própria falta de direitos. E é exatamente isto que uma união (quer na forma de sindicato ou não) dá às pessoas. A oportunidade de, democraticamente, se organizarem, debaterem e pensarem em soluções para os problemas que, de outra forma, ficariam apenas no fundo dos seus pensamentos: “Sou bem paga?”, “Será que trabalho demasiado? Estou a cuidar da minha saude mental?”, “Não tenho a certeza se me vão pagar as horas extra que fui ficando, mas talvez não valha o esforço de ir descobrir…”

E é, por isto mesmo, que este medo dos chefes e acionistas se transforma numa reação defensiva e agressiva. Começam a dar sinais, cada vez menos subtis, da sua preocupação para com toda a situação. Primeiro começa com umas frases indiretas acerca de sindicatos, um dia talvez acabe com ameaças de despedimentos caso haja greves. E aqui entra o papel fundamental da união. Sozinha, nenhuma pessoa tem a capacidade de se opor a tais ameaças. Juntas, as pessoas conseguem mais facilmente reivindicar os seus direitos e exigir serem tratadas com dignidade. Mas continua a não ser fácil. Às vezes há vitórias, outras vezes não. E essa é a vida em capitalismo: uma constante necessidade de lutar.

Posição do DiEM25: as cooperativas como solução empresarial

Mas nem tudo está perdido! Depois de todo este texto, podemos ficar com a ideia de que o mero facto de trabalhar nos coloca numa posição inferior, e que estamos condenados a estar sujeitos às vontades destas empresas. Mas isto é apenas uma ilusão, criada por elas mesmas. Existe uma alternativa. Uma alternativa justa, desenhada para organizar as empresas à volta de suprir necessidades e vontades humanas, de forma sustentável. Chama-se cooperativa.

Uma cooperativa é uma organização democrática em que as pessoas participantes concordam trabalhar em conjunto para, sem fins lucrativos, cumprir um qualquer objetivo comum. Formam, assim, empresas controladas democraticamente pelos cooperantes, que, da mesma forma, detêm o capital da empresa. Para além disso, as cooperativas seguem um conjunto de princípios partilhados por todas as cooperativas do mundo. Um destes princípios é que devem cooperar com outras cooperativas, criando uma espécie de rede nacional e internacional de empresas focadas nas pessoas, e onde o principal objetivo é suprir necessidades e desejos, não gerar lucros. Aliás, o conceito de lucro, de certa forma, desvanece! As receitas da empresa são distribuídas igualmente por todos os membros da cooperativa ou reinvestidos, caso os membros achem que esse é o melhor uso das receitas.

Todas estas características das cooperativas tornam-nas incríveis células no que é o organismo de uma nova economia, centrada nas pessoas e nos outros seres vivos. Permitir-nos-ão ter uma base sólida, em que as pessoas se organizam em grupos, mais pequenos ou maiores, que verdadeiramente melhorem a nossa qualidade de vida. Poderão vir a ser um elemento vital nesta futura sociedade pós-capitalista, em conjunto com outros órgãos como governos, a justiça e bancos (também eles democraticamente geridos).

Façamos um exercício criativo: como seria a Nobre se, em vez de uma empresa capitalista, controlada pelos acionistas, fosse uma cooperativa, controlada democraticamente pelas trabalhadoras? O primeiro passo seria criar os estatutos que guiam como a cooperativa funciona no seu dia-a-dia - que trabalho se faz, que funções existem dentro da empresa, etc.. Estes estatutos seriam, pois, escritos, revistos e votados por todas as trabalhadoras e membros iniciais. O segundo passo seria, provavelmente, eleger alguns órgãos de gestão, como uma administração e um conselho de ética, por exemplo. Note-se a maneira como estas pessoas chegam ao poder: por eleição, não por nomeação ou contratação externa; qualquer pessoa que pertença aos órgãos tem obrigatoriamente de ser membro da cooperativa. A partir daqui, toda a gestão e trabalho do dia-a-dia é gerido pelas mesmas pessoas que fazem o próprio trabalho. São elas que decidem os seus salários, são elas que decidem quando comprar maquinaria nova, que alimentos produzir, quando trocar a fábrica de local, quantos dias de férias acham adequados, onde e com que frequência realizar jantares de empresa, e tudo o mais que se possa imaginar para o dia-a-dia da Nobre. Não esquecer: como em toda a boa democracia, há rotatividade; a cada ano, ou qualquer período decidido, serão realizadas novas eleições para os órgãos da empresa, garantindo assim que não existe uma pessoa ou pequeno grupo que toma a cooperativa pelas rédeas para ganho próprio. E assim se poderia gerir a Nobre democraticamente.

Atualmente, em Portugal e pelo mundo, existem inúmeras cooperativas bem sucedidas. Muitas delas operam na área da alimentação ou da produção agrícola. No entanto, há já exemplos mais recentes de cooperativas a funcionar em áreas tipicamente “reservadas” ao capitalismo mais puro, como é o exemplo da cooperativa The Drivers Cooperative, em Nova Iorque. Uma cooperativa nativamente digital, que compete com gigantes como a Uber ou a Bolt. É apenas um exemplo de como as cooperativas podem ser uma das ferramentas nucleares numa sociedade pós-capitalista, mais justa e que proporcione uma melhor vida a todas as pessoas.

O DiEM25 apoia a luta das trabalhadoras e trabalhadores da Nobre, assim como de todas as outras pessoas que lutam pelo seus direitos, pelo seu bem-estar e pela sua liberdade. Temos como um dos nossos objetivos fazer uma transição justa para uma sociedade e economia pós-capitalistas, onde todas as pessoas têm os seus direitos concretizados, incluindo nos seus trabalhos.


  1. Este artigo foi originalmente escrito para o blog do DiEM25 em Portugal. A versão lá publicada é um pouco mais curta.