Voto digital e como democratizar a democracia
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Nota: ao atualizar o meu site, tive de ler este artigo de novo, e fiz algumas alterações em relação ao original. Para além disso, não concordo com algumas das coisas ditas (por mim), nomeadamente o tom tecnocrático com que o texto é escrito. O conteúdo é discutível, mas hoje já não consigo identificar-me com a forma, infelizmente. Mantenho o artigo na íntegra por razões de arquivo.
Como sociedade, temos de parar de nos sujeitar a soluções subótimas para os problemas, e um dos problemas que, desde há muito tempo, tem uma solução subótima é a democracia. Não uso a palavra “problema” num mau sentido, como algo que tem de desaparecer ou ser abolido, mas sim “problema” no sentido lógico: a democracia é um conceito abstrato - com algumas variantes -, que tem de ser implementado no mundo real, onde existem preocupações logísticas. Implementar a democracia da forma mais justa para todos é o nosso problema. Vamos então encontrar a melhor solução.
Democracia
Comecemos por definir democracia, e usemos como base esta definição para o resto da discussão. Democracia é o sistema político em que todos os cidadãos participam na proposta, desenvolvimento e criação de leis, exercendo o seu poder através do sufrágio universal e outras formas de participação política.
Sufrágio
Na definição anterior, há uma parte final importantíssima. O sufrágio universal. Tecnicamente, a democracia só é implementada corretamente quando todos os eleitores conseguem na prática participar no processo de voto de forma igual.
Eleitores ignorados
Assim, podemos analisar parte do sistema democrático muito objetivamente, através da taxa de eleitores ignorados. Passo a explicar: um eleitor ignorado é um eleitor cujo voto foi de alguma forma não incluído na contagem, quando, do ponto de vista do próprio eleitor, havia clara intenção de voto. Por exemplo, se eu tinha a intenção de votar no partido A, mas fiquei doente no dia da votação e não consegui votar, sou um eleitor ignorado; se sou emigrante e enviei o meu voto, mas esqueci-me de enviar a cópia do CC, e por isso o meu voto foi dado como nulo, sou um eleitor ignorado; se não me interesso por política e não sabia em quem votar, e, por isso, não votei no dia das eleições, não sou um eleitor ignorado, simplesmente abstive-me.
Duas das métricas que devemos utilizar para medir a qualidade da nossa implementação do sistema democrático são a taxa de abstenção e a taxa de eleitores ignorados, que obviamente devem tender para 0 (e que se sobrepõem de alguma forma). Não olhar para estas duas métricas (e zelar pela sua diminuição) significa sacrificar democracia.
O sistema atual
Atualmente, o sistema eleitoral português é relativamente simples, com 3 ciclos eleitorais (sem contar com o europeu). Nessas eleições escolhemos representantes, com diferentes tipos de poder, mas todas elas utilizam basicamente o mesmo sistema: existe, por defeito, um voto presencial em papel, num certo dia, no qual todas os eleitores podem participar. Há também exceções: o voto antecipado e o voto por correspondência para os círculos eleitorais internacionais.
Onde pode ser melhorado
O problema do sistema atual é que ignora por completo as suas próprias falhas, escondendo-se por detrás de uma sensação de segurança dos eleitores.
Apenas uma percentagem incrivelmente pequena dos votantes verifica o sistema de voto, mas colocar um papel numa caixa fechada, que se perde “no meio dos outros papéis todos” faz-nos sentir seguros no sistema. É algo fácil de entender, e com o qual já estamos habituados a lidar desde pequenos (rifas, sorteios de nomes dentro de um chapéu, etc).
Mas isso não significa que o sistema seja de facto seguro. Não é difícil imaginar uma mesa de voto que não tenha na sua composição um representante do partido A, e que os restantes membros decidam corromper-se e trocar 4 votos em A por 1 voto em B, C, D e E. Claro, 4 votos não são suficientes para virar uma eleição na grande maioria dos casos.
No entanto, é um facto que o sistema, que todos em conjunto aceitamos, permite um grupo de pessoas invalidar votos de outras (com ou sem intenção maliciosa). E é importantíssimo salientar que isto é objetivamente anti-democrático.
No voto por correspondência a história não melhora. Fiz parte das mesas de voto da repetição do voto da emigração. A quantidade de votos nulos que recebemos foi inacreditável. Seria expectável que as pessoas que votaram pela segunda vez soubessem o porquê de o terem de fazer, e não cometessem o mesmo erro, mas chegaram-nos caixas e caixas de envelopes sem cópia do CC, e que, por isso, foram anulados. E é triste pensar que provavelmente muitos desses eleitores não deixaram de fora o CC por escolha própria.
Mesmo que retiremos o requerimento do CC, o voto por correspondência é muito frágil. Já ouvi histórias de correios comprados, o que levou a votos comprados em massa. Não tendo provas de que é verdade, sou levado a acreditar que já aconteceu ao longo do percurso da nossa democracia.
Para além de tudo isto, temos obviamente o problema da abstenção, que penso ser impossível não relacionar com o processo do voto físico, apesar de esta intuição precisar de ser confirmada com dados empíricos.
Assim, vemos que o sistema eleitoral atual tem muitos espaços para melhoria, mas que estas melhorias são difíceis, em parte, porque, graças ao voto físico (presencial e por correspondência), o sistema se torna muito pouco flexível.
Voltando ao conceito de eleitor ignorado, percebemos que se não reformarmos o sistema, vai ser difícil reduzir essa taxa.
O voto digital
Assim, passo a introduzir o voto digital. Como seria de esperar, venho argumentar que o voto digital pode resolver alguns dos problemas logísticos do atual sistema eleitoral, e, por isso, aumentar o nível democrático da eleição, por diminuir a taxa de abstenção e de eleitores ignorados.
Tipos de voto digital
Existem essencialmente 2 tipos de voto digital: presencial e à distância. Voto digital presencial significa que tenho que me deslocar a um local físico para votar, mas em vez de desenhar uma cruz num papel, clico num ecrã ou num botão para votar. O voto digital à distância é feito (normalmente) através da internet, usando um smartphone ou computador; pode, por isso, ser feito em casa, no trabalho ou até na praia, se o eleitor assim o entender.
Ao longo do resto do artigo, irei apenas referir-me ao voto digital à distância, pois acredito que seria uma maior melhoria em relação ao sistema atual.
Prós
Um pressuposto importante: queremos democratizar a democracia; logo, qualquer característica que diminua a taxa de eleitores ignorados ou a taxa de abstenção é considerada positiva.
- Custo monetário - tanto o papel como as pessoas custam dinheiro ( demais, diga-se de passagem, as últimas autárquicas custaram [excecionalmente, devido à pandemia] cerca de €10M ao Estado . Por favor, leitor, pensa no que se poderia fazer com €10M). Realisticamente, este custo seria reduzido em pelo menos 1 ou 2 ordens de grandeza.
- Custo ambiental - para além do papel que é utilizado para os boletins, temos o papel dos envelopes (2 por voto) dos círculos internacionais e ainda todo o combustível gasto em transportes, tanto de pessoas - votantes e constituições das mesas de voto - como dos próprios votos. Este custo seria reduzido para virtualmente 0.
- Facilidade/conveniência do voto por parte da população geral - o facto de podermos votar onde quer que estejamos é, sem dúvida, mais cómodo.
- Fiabilidade do voto - para votantes por correspondência, o voto digital tem uma probabilidade ser ignorado imensamente inferior à probabilidade de o voto por correspondência (postal) ser ignorado (perdido nos correios, não chegar a tempo, etc).
- Acessibilidade - permitam-me expandir este ponto. Numa mesa de voto da qual fui membro surgiu uma pessoa cega que não sabia ler braille. Qual é a melhor solução que o sistema atual lhe propõe? “Leva contigo alguém para dentro da urna para votar contigo”. Nunca saberemos se a pessoa que riscou o papel o fez de acordo com a vontade da votante. O nosso sistema negligencia por completo pessoas em condições semelhantes. Outro exemplo são os votos de pessoas analfabetas que se enganam no partido por similaridade do logotipo, já que é o único mecanismo que têm para os diferenciar. Ambas as situações têm soluções inclusivas, acessíveis e até educativas, se houver voto digital. O voto físico não é acessível nem inclusivo como o digital, e duvido que alguma vez possa ser.
- Voto mais dinâmico - seria possível termos, por exemplo, uma descrição de cada partido facilmente acessível, mostrando o que defende, com link para o seu programa, etc., e permitindo-nos comparar as nossas opções. Para o contra argumento de que hoje essa informação é facilmente acessível, eu respondo: sim, mas quanto mais “na cara das pessoas” metermos a informação, melhor.
- Velocidade da contagem - instantânea.
- Duração do período de voto - por razões logísticas, não é viável que o voto físico funcione por um intervalo de dias. No voto digital, este problema deixaria de existir.
- Por consequência de 1. e 2., o número de votações que podemos fazer aumenta drasticamente. Não só eleições, mas por exemplo também referendos ou decisões a nível local. O voto digital possibilita sistemas de democracia muito mais direta.
- Anonimato do voto - com o voto digital é possível omitir o facto de alguém ter ou não votado. Isto é diferente do secretismo do voto, que significa que não é possível saber em que opção votei (que é o nível de privacidade atual). Esta é uma característica impossível no voto físico.
- Verificação - com o voto digital, o votante pode verificar a posteriori se o seu voto foi contabilizado exatamente na opção em que votou. Isto é também impossível no sistema atual. Já ouvi vários casos de eleitores que ficaram na dúvida (principalmente os que votaram por correspondência) e gostavam de poder confirmar. Em defesa do sistema atual, isto já é possível com as listas desmaterializadas.
Contras (refutando aqueles que consigo)
É sempre necessário ser crítico de qualquer ideia que tenhamos, mesmo que sejamos completamente a seu favor. E é igualmente importante saber refutar tais críticas. Vamos a isso.
- Muitos votantes poderiam “perder a consciência” - por ser tão fácil votar, poderíamos observar eleitores a votar quase aleatoriamente, sem pensar no impacto do seu voto, o que prejudicaria o resultado final. Refutação: não é lógico assumir que os votos que “ganharíamos” com a conveniência do voto digital tivessem uma distribuição diferente (pelo menos em grau relevante) dos restantes. Mesmo que assim fosse, argumentar que é necessário dificultar artificialmente o acesso ao voto para “aumentar a sua qualidade” é inerentemente anti-democrático.
- Poderia ser confuso para partes da população menos tecnologicamente literadas. Refutação: este argumento perde toda a força se (como é expectável) introduzirmos o voto digital opcionalmente. O voto físico pode (e deve) continuar uma opção para qualquer cidadão que deseje votar dessa forma.
- Teríamos de garantir que todas(os) as/os eleitoras(es) têm acesso a um dispositivo capaz de votar, e também acesso de qualidade à internet. Refutação: Ver o ponto acima; o que não impede um avanço importante no sentido de formar tecnologicamente a população, e garantir que todas têm verdadeiro acesso à internet.
- Coação no voto - um eleitor poderia ser forçado a votar contra a sua vontade. Refutação: este é um dos contra-argumentos mais dados pelas pessoas com quem falo. No entanto, perde todo o sentido quando pensamos que hoje isso já é possível. Eu consigo provar em que opção votei. Se alguém me oferecer €50 para votar em A, eu posso levar o meu telemóvel para a urna, gravar um vídeo meu a votar em A e mostrar esse vídeo a quem me suborna. Claro que há céticos: “Podes falsificar o vídeo”, “podes anular o voto”. Todos facilmente ultrapassáveis na prática. Reitero: teoricamente, o voto físico pode estar isento destes problemas, mas se formos pragmáticos e olharmos para o sistema que temos hoje, esse não é o caso. Adicionalmente, o contra-argumento cai completamente por terra no contexto dos círculos internacionais, por razões que julgo serem óbvias (mas curiosamente, acerca disso poucos se parecem preocupar).
- Falta de confiança por parte da população - este é provavelmente o contra-argumento mais relevante. Refutação: ainda não encontrei (nem conheci ninguém que tivesse encontrado) solução para este problema. É um problema sociológico e psicológico muito interessante, porque reflete a nossa aversão à mudança e o quão emocionais somos nas decisões que tomamos. Mesmo aquelas que vão contra os nossos valores mais profundos (como a defesa da democracia ou do direito ao voto).
- Ataques contra o sistema de voto escalam muito mais facilmente. Refutação: este é um problema técnico e de implementação, em grande parte resolvido, mas para o qual apenas poderíamos ter confiança numa solução depois de testar num ambiente real (mesmo que de pequena escala).
Casos de uso
Parece-me claro que a primeira situação onde o voto digital faz todo o sentido é nos círculos internacionais. Garantir que todo e qualquer cidadão eleitor consegue, na prática, exercer o seu direito constitucional ao voto é essencial. Também a acessibilidade e inclusividade do voto para pessoas idosas ou com diferentes tipos de deficiência poderia aumentar significativamente, melhorando tanto a taxa de abstenção como a de eleitores ignorados. Finalmente, permitiria à população ter acesso a uma democracia mais direta, através de votações locais e/ou referendos nacionais, para que a nossa democracia melhor e mais rapidamente refletisse as suas necessidades.
Detalhe sobre autenticação
Apesar de no voto digital ser possível garantir por completo o sigilo e a anonimato do voto, é obviamente necessário autenticar o votante de forma segura. Intuitivamente, a melhor maneira de o fazer seria através da Chave Móvel Digital, um leitor de Cartão de Cidadão, e/ou dados biométricos (que idealmente não seriam registados após o voto).
Conclusões
Fazendo uma lista do que imagino para uma primeira implementação do voto digital:
- Ser opção para os círculos internacionais, e preferencialmente também para os outros círculos.
- Informar e formar os setores da população que mais beneficiariam do voto digital (idosos, pessoas com problemas de acessibilidade, etc), para que possam tirar dele o máximo partido possível.
- Utilizar os ganhos de eficiência para cortar custos no processo atual, e idealmente investir as poupanças em iniciativas sustentáveis, como energias renováveis, ou educação pública.
- Obviamente, integrar corretamente com o sistema atual.
Espero que depois de leres a minha opinião, tenhas ficado com um pouco mais de vontade de explorar um sistema de voto digital à distância, e que te sintas entusiasmado sobre como o podemos usar para melhorar a democracia em Portugal!
Notas
Há muitos mais temas importantes acerca do voto digital de que não falei, como a parte tecnológica, comparação com outros países, etc. No entanto, deixo, para exploração do leitor, alguns links úteis.
- O parlamento já utiliza voto eletrónico
- A Estónia vota digitalmente desde 2005 e a população mais velha tem votado digitalmente cada vez mais
- Simulador do voto digital no Brasil
- Avanços técnicos no voto digital, feitos por uma equipa liderada por um académico português!
Citado em https://expresso.pt/opiniao/2023-01-12-Reforma-da-lei-eleitoral-e-modalidades-de-voto-8624c0c6